Arrepia-me este comportamento genuinamente lusitano de elevar, quase ao patamar de Santo, uma figura pública – ainda por cima milionária – quando morre. Os portugueses sempre foram assim e vão continuar a ser. Mas o que tem sido dito, sobre a morte de Américo Amorim, põe-me triste.

 Ver e ouvir, na televisão, ‘no tapete vermelho das exéquias’, todo o tipo de gente tirar partido do Homem que ele foi, muito mais do que expressar um sentimento de pesar e dor, arrepia-me todo.

Mas há declarações que ofendem a memória do defunto. Aníbal Cavaco Silva, só para citar um exemplo, disse para todos os canais, que “tinha morrido o rei da cortiça, que assim levou o nome de Portugal a todo o mundo”. Limitar a obra deste empresário à cortiça é o mesmo que deitar fora a rolha do melhor vinho do mundo sem o provar.

A pessoa que partiu foi muito, muito para além disto. Nunca foi acarinhado pela burguesia nacional porque a sua origem foi humilde. Não fica bem a certa gente ter poucas referências de ‘família’.

Amorim foi o único empresário português que teve relações comerciais com a ex-União Soviética. Deve ter dito alguma coisa ao ouvido de Salazar que permitiu tal engenho. Qualquer coisa do género: “Assim o senhor transmite uma mensagem mais tolerante”.

Mas isto sucedeu há muito tempo.

De lá para cá, com todos os sobressaltos históricos, Américo nunca fugiu para o Brasil e multiplicou, por milhões, o Dinheiro que aparentemente ele amava. Nestas alturas, toda a gente diz que o conheceu e privou com ele.

Podia inventar e dizer algo parecido. Limitei-me a conversar duas vezes, uma em França e outra em Setúbal, quando o imobiliário era a menina de ouro dos seus olhos. Há escala grande, ele foi um visionário do ‘toca e foge’.

Fez nascer, com parceiros franceses, a primeira grande promotora imobiliária de Portugal. Poucos anos depois fundou com Horácio Roque o único banco português vocacionado para este sector. Foi uma espécie de raposa, imprevisível. Quando diante de todos não estava flagrante o alvo a alcançar, devorava a presa e, por milagre, transformava um pequeno troféu num gigantesco negócio. Isto sucedeu, no imobiliário, no turismo, na agricultura e, sobretudo, sublinho, nos mercados financeiros. Tinha uma inteligência hábil e rápida, sem nenhum pudor em largar uma grande actividade para a seguir se meter em outra.

Por isso, fico magoado quando se fala só da cortiça, ou, quando, a imprensa cor-de-rosa, começa a inventar sobre a sua herança.

Tenho pena de ter a memória que tenho mas deixo-vos a única observação que lhe fiz, nos arredores de Setúbal, em pleno ‘El Dourado’ do imobiliário, anos 90. “Acredita mesmo neste projecto?” – Questionei. A sua resposta foi um sorriso “malandro”. Essa obra não foi um sucesso, mas quero crer que ele não perdeu um tostão…

Foto: Por Fotos GOVBA - https://www.flickr.com/photos/agecombahia/4225974893/, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=60985170